Aos pseudo-intelectuais intelectuais aprendizes que desistiram por completo da juventude e abraçaram décadas antes as crises e a vida social da meia idade. Onde está escrito que, para ser Feliz, temos de seguir a bitola temporal que a sociedade pós-moderna nos impôs?
I went to the woods because I wished to live deliberately,
to front only the essential facts of life, and see if I could not learn what it had to teach,
and not, when I came to die, discover that I had not lived.
*
Fui para a floresta para viver deliberadamente, para sugar o tutano da vida.
Aniquilar tudo o que não era vida.
Para, quando morrer, não descobrir que não vivi.
Henry David Thoreau
E porque, para morrer, vamos ter sempre o resto da Vida....
Estes são problemas omnipresentes no mundo do surf e bodyboard. Atravessam países e culturas. E que atire a primeira pedra quem gosta de ver crowd estranho – os chamados haoles - no seu “quintal” ou um dos seus secrets revelados na capa da magazine do mês.
Eu encaro este problema, em particular, duma forma um pouco mais profunda do que o simples egoísmo e desdém pela concorrência alheia. É aqui que a minha paixão por ondas e paisagens solitárias entra em conflito com a minha alma de jornalista. Se por um lado a primeira jura a pés juntos proteger a todo o custo o seu cantinho mágico, a segunda sussurra-me que o leitor tem direito a saber, tal como eu, da existência daquele lugar. É um direito da res publica e, por outro lado, o dever do jornalista, inchado de orgulho, em ser o primeiro a dizer "eu sei que existe e posso dizer-vos onde é". E até aposto que nós poríamos o moralismo de lado por uns segundos e lá comprávamos a revista para saber as novidades. No entanto, até mesmo O Direito da Comunicação Social diz que “é da natureza da informação dizer a verdade e, contudo, nem toda a verdade é boa para ser dita”.
Encontrar um ponto de equilíbrio entre o divulgar e omitir, entre desenvolver o mundo da competição com novas etapas e resguardar locais que deviam ser reservados ao free-surf. Complicado!
Considero que os desportos de mar, em particular o surf e o bodyboard, são bem mais que a prancha da última moda, ondas, manobras e fama. Neles reside tudo o que é contrário à preguiça: é o saborear do caminho que se faz para chegar até lá, literal e metaforicamente falando. São avanços, retrocessos e desilusões. É persistência, mérito e o prazer da descoberta. É a ousadia de se lançar em "mares nunca dantes navegados" e a esperança de sermos brindados, num regresso, com a mesma pureza duma primeira vez.
Mas, acima de tudo, é mostrar respeito por quem desbravou antes de mim aquele lugar, mantendo um segredo. Respeito por aquele pedaço de natureza abençoado desbravado apenas num ou noutro escasso momento. Afinal, também não é contra-natura deixar vazia uma onda perfeita? No entanto, a história ensina-nos que estes deveriam ser actos mais ou menos solitários, pois tudo que implica massas implica inevitavelmente a destruição ou profunda modificação de uma espécie de património, seja ele cultural, seja ele natural.
Embora esta seja uma opinião meramente pessoal, não é propriamente, na sua base, uma ideia minha. O filósofo e sociólogo Walter Benjamin já referia isto por outras palavras, quando escreveu em 1936 o artigo "A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica", onde teorizou o conceito do "fim da aura". Em resumo, para o autor a experiência de uma obra de arte residia na sua própria aura, isto é, na sua própria autenticidade original ou "manifestação única de uma lonjura". Com o advento da sociedade burguesa e as novas técnicas de reprodução e massificação (a industria, a fotografia, etc.), dá-se aquilo a que ele chama de "decadência da aura". Num plano prático, a arte pode massificar-se, reproduzindo-se infinitamente. As massas têm acesso a essa arte, de forma politizada mas nesse processo de reprodução subtrai-se aquilo que é mais importante: a aura dessa mesma obra de arte, ou seja, a característica essencial que faz dela Ser "obra de arte" em si mesma, única e irrepetível.
O que eu quero dizer com tudo isto é que, ainda que um spot não seja propriamente uma "obra de arte" – pois é do plano natural e não cultural - a massificação (ou divulgação perpetuada) desse mesmo lugar, implica inevitavelmente a perda da sua "aura", ou seja, da característica que perdura no tempo e que pode ser admirada e usufruída de geração em geração. Uma “lonjura” que deveria ser protegida. Não quero dizer com isto que estejam em causa os direitos de meia dúzia de locais. Trata-se acima de tudo de proteger a aura do lugar em si.
Apesar de tudo, considero que os direitos se conquistam como em tudo na vida. Seja por herança, por conquista ou por mérito. Seja por nascermos ali e surfarmos lá toda a vida, pela dica do nosso melhor amigo ou pela nossa performance dentro de água.
Mas deixemo-nos de hipocrisias. Lugares secretos ou vedados aos locais, nos dias que correm, começam cada vez mais a ser uma ideia romântica. Se por um lado queremos ver o nosso desporto evoluir temos inevitavelmente de engolir alguns sapos, nomeadamente, o aumento de crowd ou, em último estádio, a realização de campeonatos na nossa praia de eleição. Além do mais é irreal pensarmos que um spot a poucos minutos da civilização seja eternamente secreto. A humanidade é cada vez mais uma grande aldeia global e caminha muito mais no sentido da exposição do que no da preservação. É uma consequência dos tempos modernos que se estende a todos os campos sociais.
Resta então, a cada um de nós, ser responsável por manter a todo o custo a aura do nosso spot pois, no final de contas, nós também fazemos parte dessa “manifestação de lonjura”, numa comunhão perfeita. Seja pela forma como nos relacionamos com o lugar, com os outros que o partilham connosco ou pela nossa atitude no mar. Sejamos cinco ou sejamos cinquenta.
Texto Publicado na Revista FreeSurf Secção "Flores do Mar"- Nr. 6 Novembro / Dezembro 2008
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Este texto é a retoma de algumas ideias veiculadas aqui, em posts anteriores. Agradeço sobretudo ao blogger Hugo M. pela profícua e estimulante troca de comentários que em muito enriqueceram este resultado final.
Antes de mais quero agradecer os comentários ao meu post anterior. Não espero que todos concordem comigo, nem é esse o meu obejctivo. Pelo contrário: acho que é pela argumentação e contra-argumentação que todos nós evoluímos um pouco mais e alargamos horizontes. Agradeço em particular a visita e o comentário de hugom, já que me fez pensar um pouco mais aprofundamente sobre este assunto. Não pretendendo com este novo post impôr as minhas ideias uma vez mais, e muito menos, arrogantemente. Venho apenas tentar demonstrar mais teoricamente os meus pontos de vista, dando o feedback merecido, já que vocês tiveram o interesse de o fazer comigo com os vossos comentários.
Posso voltar a referir o argumento no meu post anterior: para mim, "tudo o que implica a massificação de qualquer coisa, implica forçosamente a destruição ou profunda modificação de um património cultural e/ou natural". Embora esta seja uma opinião meramente pessoal, não é propriamente, na sua base, uma ideia minha. Walter Benjamin já referia isto por outras palavras, quando escreveu em 1936 "A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica". Este filósfo e sociólogo teorizou neste artigo o conceito de "fim da aura".
Para o autor a experiência de uma obra de arte residia na sua prórpria aura, isto é, na sua própria autenticidade original ou "manifestação única de uma lonjura", como ele mesmo refere. Ora, com o adevento da sociedade burguesa e, em última análise, com as novas técnicas de reprodução e massificação (a industria, a fotografia, etc), dá-se aquilo a que ele chama de "decadência da aura". Num plano prático, a arte pode massificar-se, reproduzindo-se infinitamente. As massas têm acesso a essa arte, de forma politizadas mas, em última análise, nesse processo de reprodução subtrai-se aquilo que é mais importante: a aura dessa mesma obra de arte, ou seja, a característica essencial que faz dela Ser "obra de arte" em si mesma, única e irrepetível.
O que eu quero dizer com tudo isto é que, ainda que um lugar não seja propriamente uma "obra de arte" - já que até é do plano natural e não cultural - a massificação (ou divulgação perpetuada) desse mesmo lugar, implica inevitavelmente a perda da sua "aura". A "aura" como manifestação de uma lonjura", ou seja, da característica que perdura no tempo e que pode ser admirada e usufruída de geração em geração; deve ser protegida a todo o custo, na minha opinião.
Não me referia a proteger 5 ou 6 indivíduos, como dizia o meu caro leitor hugom. Trata-se de proteger a aura do lugar em si. Talvez quisesse antes dizer: "porque é que 5 ou 6 indivíduos têm mais direito em usufurir daquele lugar, do que os restantes leitores da Vert". A isso já eu respondi, na minha humilde opinião. Os direitos conquistam-se, como em tudo na vida. Até para se saber onde ficará tal lugar, tivemos de subtrair a revista, conquistando assim o direito a lê-la. Mas, como dizia no post anterior, para mim o surf e o bodyboard, nomeadamente, não é apenas surfar. "É o saborear do caminho que se faz para chegar até lá, literal e metaforicamente falando. São avanços, retrocessos e desiluções. É persistência. É mérito. É o prazer da surpresa da descoberta". Eis um exemplo, fazendo de novo a ponte para o mundo das artes: é por isso que precisamos de viajar ao Louvre para disfrutar da aura da verdadeira Mona Lisa. Há prazer na viagem, há prazer em aceder a algo mais ou menos protegido do mundo. Há que proteger essa "obra" , para as gerações vindouras, pois é na sua aura que reside o seu valor.
Mas pediam-me também argumentos deontológicos. Faço simplesmente minhas as palavras de Alberto Arons de Carvalho em Direito da Comunicação Social.
É da natureza da informação dizer a verdade e, contudo, nem toda a verdade é boa para ser dita. Assim, existe no trabalho jornalístico, e particularmente na procura da informação, uma zona de incerteza que obriga o jornalista a envolver o seu próprio julgamento, a pôr ele próprio nos pratos da balança o interesse público (...). (p.404)
Estão portanto implicados, no trabalho jornalístico factores de ordem técnica e ética que estão em constante tensão: as primeiras, respeitam as condições de uma boa informação e as segundas respeitam os contextos de boa comunicação. A ética é baseada no respeito. Esse tal respeito que referi no post anterior. Arons de Carvalho, cintando Ferry, diz ainda que
(...) o respeito se indica por "uma retenção da actividade instrumental convertida para a actividade comunicacional". Por outras palavras, pelo reconhecimento, no tema tratado pela informação (..). Boas razões significa que a escolha ética, para ser fundamentada, deve necessáriamente passar por uma troca de argumentos. O que é que, no tratamento de tal informação, impõe que eu decida dizer ou não dizer, dizer as coisas de uma forma e não de outra". (p. 416)
Quem sou eu para pedir satisfações aos fotógrafos ou bodyboarders em questão, tal como sugeriam. Acrescentava até, quem sou eu para pedir satisfações à Vert ou ao jornalista que em nome da boa informação, esqueceu, segundo a minha opinião volto a sublinhar, a boa comunicação? Não há nenhuma lei jurídica ou deontológica que obrigue em manter sigiloso um lugar perdido em nenhures, se até mesmo os diretos da vida privada, das pessoas públicas, são algo ténues face ao direito da informação. Falava apenas de contextos de "boa comunicação", por isso, volto a citar-me "há maneiras de abordar as mesmas coisas sob prismas diferentes. Por isso há o jornalismo sério e aquele que cai no sensacionalismo... ."
Quem sabe se assim "a aura" daquele lugar não pudesse perdurar um pouco mais em toda a sua lonjura.... .
Bibliografia:
Benjamin, Walter, "A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica" in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio d'Água, 1992.
Carvalho, Alberto Arons et al, Direito da Comunicação Social, 1ª edição, Lisboa Notícias, 2003.
Retrato falado 'Claro que sou coscuvilheiro' Das polémicas. Dos amores. Da vida mundana. Da morte dos que lhe foram queridos. Eduardo Prado Coelho, protótipo do intelectual português, confessa-se. E com muita auto-ironia Sara Belo Luís / VISÃO nº 700 3 Ago. 2006 A clarabóis do prédio deixa passar uma luz muito bonita. O dia está quente, demasiado quente para quem, como Eduardo Prado Coelho, 62 anos, mora no último andar de um prédio lisboeta, ali ao Conde Redondo. À porta, está Najila, de que Prado Coelho já falou numa das suas crónicas. Os leitores mais fi éis conhecem-lhe a vida, aquela que ele, todos os dias, vai revelando no jornal Público. «A minha vida fi ca devassada», haverá de dizer no fi nal desta entrevista, já de gravador desligado, com a ironia dos que se riem de si próprios. Prado Coelho não se recusa a falar de si nem mesmo da doença, recentemente diagnosticada, que agora lhe disciplina as refeições e lhe retira o fôlego para os três lances de escadas. Até o seu último livro (intitulado Nacional e Transmissível e publicado pela Guerra e Paz), sob o pretexto de escrever sobre coisas portuguesas, acabou por se converter numa autobiografi a em forma de assim. Pessoal e intransmissível. VISÃO: No seu último livro, define-se: «Um português de classe média, professor, escrevendo nos jornais, tendo uma certa vida pública e cerca de 60 anos, com uma filha, um neto e algumas histórias de amor.» Uma biografia de si próprio? EDUARDO PRADO COELHO: Parece-me uma boa síntese de mim próprio. Pertenço a uma classe média pois não tenho nem fortuna pessoal nem sequer tendência para amealhar. Fui professor durante muitos anos e, desde que estou reformado da Universidade Nova, ainda dou umas aulas. «Uma certa vida pública»? Acusam-me de ser muito dado ao «social», de conhecer muita gente, o que até é verdade porque atravessei muitos meios. É um facto que, a partir de certa altura, conheci grande parte de Lisboa. Essa expressão «uma certa vida pública» é uma ironia para as pessoas que dizem que eu tenho uma vida demasiado mundana. É pessoa para mágoas e ressentimentos? Não. Tenho uma grande capacidade de esquecer, de apagar as dimensões emocionais dos confl itos que, em determinada altura, possam existir. Uma vez, depois de ter tido uma daquelas polémicas violentíssimas... Adora polémicas. Adoro polémicas. A polémica é um jogo retórico e eu sempre gostei desse jogo retórico. Um dia, o Miguel Sousa Tavares disse qualquer coisa a propósito de eu ter escrito que tinha ido ao veterinário com um dos meus cães. Quando ele me imaginou no veterinário, com o cãozinho no colo, a conversar com os outros, eu expliquei-lhe que ele não conseguia pôr os meus cães, que pesam 50 quilos, no colo! Nunca escondeu a importância que as mulheres têm para si... Mas também não andei a publicitar. Casou quantas vezes? Casar, casar, de papel passado, casei três vezes. Mas isso não foi importante, casei por causa das circunstâncias, pressões familiares e coisas assim. Vivi bastante tempo com outras pessoas com as quais só não casei porque não calhou. Quem era uma tal Celeste, para quem olhava e, segundo diz, «via a Katherine Hepburn»? Celeste Clara Madeira, uma senhora de quem eu gostei muito, era minha madrinha. Vivia em casa da minha avó e ia sendo madrinha de toda a gente que ia nascendo porque queria associar-se à família. Tinha aprendido a ler francês através da revista La Femme d'aujourd'hui e, como gostava muito de ler, fazia a primeira selecção dos livros candidatos aos prémios de que o meu pai [Jacinto Prado Coelho] era membro do júri. Como tinha insónias, ficava a ler até de madrugada e eu, com maldadezinha, acordava-a às dez da manhã. Era apaixonada por um senhor chamado Eduardo, que em São Martinho do Porto atravessava a baía a nado e que, a certa altura, tinha decidido casar com uma amiga dela. O seu padrinho era o António José Saraiva, não era? Sim. Quando eu nasci, ele dava-se muito bem com o meu pai. Mas, depois, ao fim de um ano, por causa de uma crítica que o meu pai fez a um livro, cortaram relações. Só aos 20 e tal anos é que encontrei o António José Saraiva e lhe disse que era seu afilhado. Conversámos um pouco, mas já era tarde para estabelecer uma cumplicidade. Ele e o seu pai nunca se reconciliaram? Não. Mas o meu pai dava-se bem com o irmão, o José Hermano Saraiva, a quem devo uma coisa inestimável. O quê? Um dia, o José Hermano Saraiva telefonou lá para casa a perguntar para que curso é que eu ia. Como o meu pai (que não queria nada que eu fosse para Letras) lhe respondeu Direito, ele ofereceu-se para me dar alguns conselhos. Estive uma manhã no escritório dele a ouvir o que era o Direito, as qualidades do Direito, as virtudes do Direito e, depois, descemos para tomar uma bica. Foi, segundo o José Hermano Saraiva, a minha primeira bica jurídica. A conversa não teve efeito. Quando cheguei a casa, estava disposto a fazer tudo para não ir para Direito. Mas, afinal, porque é que o seu pai não queria que fosse para Letras? Eu gostava imenso de Filosofia, mas, por causa daquela vida tumultuosa do conselho científico da Faculdade de Letras, o meu pai e os professores de Filosofia estavam de relações cortadas. Se eu tivesse ido para Filosofia, tinha tido a vida negra. Por outro lado, o meu pai achava desagradável que eu fosse para Românicas, um departamento onde ele era professor catedrático e... Figura tutelar. Figura tutelar e, a partir de certa altura, uma espécie de pai dos assistentes. Lembro-me de uma assistente que não queria que se soubesse que tinha casado porque queria ser ela própria a dar a notícia ao meu pai. Por uma questão de feitio, ele manteve sempre uma espécie de distância que o fazia sofrer um pouco. Numa das crises estudantis, houve um aluno que se levantou no meio de uma assembleia geral e disse: «Ó Jacinto, tu.». Ao contrário daquilo que se poderia pensar, o meu pai gostou imenso. Sentiu o peso de ser filho único? Senti um pouco. Embora tivesse amigos, brincava e estudava muitas vezes sozinho. Isso no Liceu Camões? Sim. Estava numa turma com o João Lobo Antunes, o mais brilhante de todos nós a partir do segundo ano (até ao segundo ano, fui eu), o romancista Mário de Carvalho, os cardiologistas Ricardo Seabra Gomes e António Nunes Diogo. O Amaro da Costa era mais velho, mas também andava por lá. E, depois, havia um grupo fascizante, que se reunia ao sábado à tarde no liceu Gil Vicente para ler o Primo de Rivera, contra o qual formámos uma espécie de grupo de resistência. Essas actividades eram vistas com preocupação lá em casa? A minha mãe, por natureza, inquietava-se sempre. Durante as greves [estudantis] de 1964/1965, houve uma greve de fome na cantina da Cidade Universitária. Greve de fome não era propriamente o meu estilo, mas andei pela rua a distribuir panfletos escritos pelo Vasco Pulido Valente e pelo Manuel Lucena. Lembro-me de ter ido uma vez a casa do professor Delfim Santos os meus pais levavam-me de carro e ficavam à esquina para ver se eu não era preso. Entretanto, a história do prémio do Luandino Vieira, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores, marcou muito a família. Como assim? Recebíamos telefonemas nocturnos, tocavam à campainha às seis da manhã e recordo-me de a minha mãe me dizer para levar os livros subversivos que eu tinha para casa de um amigo. Deu um bocado nas vistas, mas saí com uma mala e fui pôlos em casa do José Manuel Anes, que acabou por ser grão-mestre da Maçonaria. Fala muito nas casas onde viveu.Faz sentido organizar uma vida em função das casas que se ocupou? Nas casas acumula-se uma certa memória. Na adolescência, a mais marcante é a casa da Marquês da Fronteira. Era um quinto andar, no número 131, com vista para a Penitenciária e para uma árvore lindíssima para a qual o meu pai, antes de morrer, olhava horas a fio. Depois disso, estou pouco tempo na Avenida do Uruguai, antes de me mudar para o Lumiar onde estabeleci toda aquela rede de relações de que gosto ir à tabacaria comprar os jornais, trazerem-me o café como estou habituado. Depois mudou-se para Paris. Onde tinha uma casa muito bonita e muito bem situada, no Marais, na Rue des Francs Bourgeois. Era um palácio do século XVII, todo remodelado, com uma cave para onde ia à noite. Não sendo muito grande, era uma casa onde eu me sentia muito bem. Estive lá dez anos e dez anos é muito tempo. Tinha também os meus restaurantes como o Le Gamin de Paris ou o Opiom, onde me lembro de ter ido com o Manuel Maria Carrilho, já ministro da Cultura, e com o seu chefe de gabinete, José Afonso Furtado. Era La Nuit de Le Petit Robe Noir [A Noite do Pequeno Vestido Preto], todos os empregados estavam de saltos altos, maquilhadíssimos, com meias rendilhadas e cabeleiras pretas na cabeça. O José Afonso Furtado estava muito inquieto e, às tantas, quando quis ir à casa-de-banho, que fi cava na cave, disse-me: «Eduardo, vou à casa-de-banho, mas se não aparecer dentro de cinco minutos, vá salvar-me». Não foi preciso, mas ele ia encostado à parede. Voltando à ideia das casas, a casa é apenas uma memória? E é também uma forma de programar o quotidiano. Porque cada casa tem o seu tempo. Quando me mudei para aqui, num mau momento da minha vida, passei a ter outro tempo. Quando, à quinta vez do dia, subo três andares sem elevador, começo a dizer que é melhor ir dormir a noite ao Hotel Madrid. Já disse que uma das suas qualidades como professor era «uma capacidade acelerada de relacionação». O que é que isto quer dizer? Como um malabarista que tem vários pinos na mão, atira-os ao ar e, depois, consegue recolhê-los todos. Isto, para mim, é que é uma boa aula partir de um tema, começar a falar dele, relacioná-lo com outros temas a grande velocidade e, no final, fazer a síntese. Enquanto aluno, também era isso que apreciava num professor? Tive professores muito diferentes. No Liceu Camões, o Mário Dionísio tinha tudo rigorosamente planeado. O David Mourão-Ferreira, de quem fui assistente, era capaz de escolher um poema e desenvolvê-lo da forma mais inesperada e desconcertante que se possa imaginar. Foi um grande professor, ensinou-me a ler, revelou-me autores como Roland Barthes, Octavio Paz e Paul Valéry. O seu pai tinha esses livros? O meu pai tinha esses livros, mas eu sempre tive a obsessão de ter os meus próprios livros. Gosto de os sublinhar e, durante muito tempo, gostava de os forrar com um plástico que comprava numa loja de ferragens. Dizia-se que, mesmo antes de ter sido conselheiro cultural da Embaixada portuguesa em Paris, já era conselheiro cultural francês em Lisboa. Formei-me em Românicas, a minha mãe tinha escrito uma tese sobre Balzac directamente em francês (coisa que eu nunca ousei fazer.) e, ao meu pai, disseram um dia que ele falava francês como Racine. Eu tinha todo um ambiente para pertencer a um mundo francófono. Os seus pais falavam francês quando não queriam que percebesse o que estavam a dizer. O francês começou então por ser uma língua secreta? Sempre me irritou o facto de alguém saber uma coisa que eu não sei. Quando as minhas amigas me dizem «o Eduardo sabe que a não-sei-quantas já deixou o não-sei-quantos?», fico com a sensação que elas sabem mais do que eu. É portuguesmente coscuvilheiro? Claro que sim. E não é em Portugal: o psicanalista francês Jacques Lacan encontrava-se regularmente com uma jornalista para saber as coscuvilhices da vida de Paris. Como foi vendo o mundo francófono perder terreno para o mundo anglo-saxónico? Fui observando-o nos meus alunos, que não lêem nada em francês. Tenho a sensação de que há um empobrecimento quando se sabe apenas inglês porque, ainda por cima, o inglês deles não é propriamente um inglês shakespeariano. Assina uma coluna diária no Público. Alterou completamente a minha vida em termos de relação com as pessoas. Sente a influência que tem quando fala do livro de fulano, do filme de beltrano ou da política da ministra da Cultura? Ao fim de seis anos de crónicas, sinto que tenho uma determinada influência. Escreve sobre temas da cultura e da política, mas também sobre coisas do quotidiano... É dessas crónicas que as pessoas mais gostam. Quando escrevi por exemplo sobre a descida para o parque de estacionamento do El Corte Inglés, recebi imensas cartas de leitores. Mas não paga um preço por escrever sobre essas coisas, coisas vulgares, digamos? Tudo isso é escrito com um certo humor. Quando antes do Natal estive internado em Santa Maria, escrevi quatro crónicas sobre o hospital. Tudo aquilo é de uma enorme violência sobre as pessoas, que ficam ali perdidas, especadas, pasmadas, a olhar para o ar e a ouvir gritos de outros doentes. Cá fora, houve imensa gente que se reconheceu naqueles textos e, lá dentro, eles tiveram consequências. Gosta de ter esse poder? Não gosto nem desgosto. É um dado de facto. Aceitaria ser ministro da Cultura? Agora, já não tenho paciência. Houve fases em que poderia ter sido, mas agora já só me apetece escrever. Esteve muito próximo do ministro Carrilho. Independentemente das coisas no seu comportamento com as quais não concordo (e, às vezes, são bastantes.), é um daqueles amigos que têm atravessado a vida. Costumo dizer que ele escreveu o seu primeiro texto numa Hermes Baby, uma máquina de escrever que os meus pais me tinham oferecido. Como reage às críticas que o acusam de amiguismo? Em muitos casos, essas pessoas tornaram-se amigas porque eu escrevi sobre elas. Por exemplo, não conhecia a Teresa Villaverde quando escrevi sobre o seu primeiro filme, A Idade Maior. Tal como não conhecia a Mafalda Ivo Cruz quando li Um Requiem Português. A morte de amigos (como o José Ribeiro da Fonte, a Margarida Vieira Mendes, o Al Berto e a Maria de Lurdes Pintasilgo) fê-lo olhar para a morte de outro modo? Todos nós vamos subjectivando a morte. Do Eduardo Guerra Carneiro ao Fernando Gil, todas as pessoas que se afastam criam em mim um sentimento de que estou a empobrecer o meu espaço de relações. Sobre a morte do seu pai, escreveu. A morte do pai marcou-me muito. Foi lenta e, já muito debilitado, ele ainda se punha a ver provas. Um dia, nos últimos tempos, perguntou-me porque é que não o levávamos a Londres. E eu tive que lhe dizer que o médico achava que isso só o ia cansar, que já não valia a pena. Escreveu «vamos ocupar o lugar dele, mesmo que isso implique a sua morte». Só nos tornamos verdadeiramente adultos depois da morte do pai. Ao enfrentar agora a doença, sentiu que lidar com ela é sentir o corpo pela primeira vez? Claro que o corpo só se sente verdadeiramente na doença. No meu caso, senti uma certa sonolência, um certo cansaço e, em alguns períodos, senti dificuldade em escrever, mas nunca tive dores e, quando comecei a dizer às pessoas que tinha uma colangite (uma doença típica dos países nórdicos, mas rara nos do Sul), ninguém sabia o que isso era. Num documentário que fez sobre si próprio, Hervé Guibert, um homossexual que acompanhava o Michel Foucault, dizia a certa altura: «Todos os dias, perco um gesto.» É isso. Todos nós, a partir de certa altura, perdemos gestos. Perdemos a capacidade de fazer não-sei-quantas-piscinas. E de subir três andares sem assoprar. E por aí fora. Foi mudando de casa, mas da barba nunca se livrou, pois não? Estava em França, em 1972, quando resolvi deixar crescê-la e, desde então, nunca mais a fiz. Que felicidade que é não ter que fazer a barba de manhã! |
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